Artigo/Entrevista

18 ANOS | 18 GEÓGRAFOS

Entrevista GILDA DANTAS

Quem é a geógrafa Gilda Dantas?

Digamos que sou madeirense “de gema”. Nasci no limite ocidental do concelho do Funchal, na freguesia de São Martinho, há 79 anos, em uma casa localizada no interflúvio, em forma de lombada, que separa o vale da Ribeira dos Socorridos do pequeno vale onde, atualmente, foi construída a via que liga a Estrada Monumental ao sítio das Quebradas. Daí vem o nome de sítio da Lombada.

Para a época, a minha família não era considerada grande: quatro filhos, três do sexo masculino e uma menina (eu). Do meu casamento nasceram três rapazes. A nova geração ofereceu-me duas netas.

 

Quando descobriu o seu interesse pela ciência geográfica?

Desde o tempo de colégio. O meu professor de Geografia, Dr. Sousa e Freitas, tinha uma forma de explicar a matéria que me despertava atenção. Nunca dispensava o mapa nas suas aulas. Até na disciplina de História, ministrada pelo mesmo docente, o material utilizado era o mapa. Lembro-me do Professor explicar as Invasões Franceses indicando, através do mapa, o percurso seguido pelos franceses em território português até serem derrotados. Era uma forma de levar a matéria já sabida para casa. O mapa, a localização dos lugares, a curiosidade em saber o que existia por esse mundo fora despertaram-me para a Ciência Geográfica. Ainda agora isso acontece. Por exemplo, acabei de chegar do Brasil, de visita a um dos meus filhos.

Nessa viagem tive oportunidade de passar uns dias num lugar paradisíaco chamado Rio Quente, precisamente porque as águas brotam do solo a elevadas temperaturas. Uma vez que não há vestígios de fenómenos vulcânicos nessa região, a minha primeira curiosidade foi saber como essas águas sofriam aquecimento, em uma extensão de mais de 12 Km, dando origem a piscinas naturais de águas quentes. O “bichinho” da Geografia continua, apesar da idade ir avançando.

 

Em que instituição de ensino superior se formou? Como eram as aulas nessa altura? Qual era a sua unidade curricular preferida?

Licenciei-me pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Fiz o Mestrado e Doutoramento na Universidade Nova de Lisboa. O curso era de cinco anos. Ao acabar o terceiro ano ficávamos com o grau de bacharelato e, ao terminar os cinco anos de curso, concluíamos a licenciatura.

Sempre preferi Geografia Humana e, dentro deste ramo, o Ordenamento do Território e a Demografia foram os estudos que me despertaram mais atenção. Os problemas da natalidade, a mobilidade da população, o êxodo rural, as grandes concentrações de habitantes nas cidades e áreas urbanas e, por consequência, como ordenar os espaços ocupados por essa população, são temas sempre atuais e que continuo a investigar, mesmo já reformada. Julgo que não houve grandes mudanças, ao longo do tempo, na forma de dar as aulas no Ensino Superior. Havia as aulas teóricas, totalmente expositivas, ministradas, quase sempre, pelos Professores Catedráticos e as aulas práticas lecionadas pelos Assistentes dos Profs que nos davam as teóricas. Penso que ainda continua assim. A grande diferença era que todos os mapas e gráficos eram feitos à mão, enquanto, atualmente, o computador, através da oferta de uma diversidade de programas, é uma grande ferramenta de apoio às aulas e aos trabalhos práticos.

 

Onde exerceu a carreira profissional? Conte-nos um pouco do seu percurso profissional enquanto geógrafa.

Comecei a minha carreira profissional de professora em Câmara de Lobos, na Escola Preparatória das Preces e no Anexo do Salão. Lecionava Estudos Sociais e Português. Foi uma experiência muito rica no contacto com colegas, a maior parte deles, no início de carreira como eu, mas com muita vontade de ensinar e com muita alegria de viver. Havia alunos muito carenciados a quem tentávamos dar o máximo de atenção e de ajuda, sem olhar a horários. Passados os três primeiros anos nestas escolas, concorri e fiquei colocada no Liceu (nessa altura ainda se chamava Liceu Nacional do Funchal, só depois é que passou a denominar-se de Escola Secundária de Jaime Moniz).

Comecei a lecionar Geografia e Ecologia, disciplina nova que tinha sido integrada na Área de Saúde e que poucas pessoas sabiam o que significava. Como no currículo do meu Curso constava a Cadeira de Ecologia, fui chamada para ministrar esta disciplina. No início, quando comecei a dar aulas na Escola Secundária de Jaime Moniz sentia-me um pouco intimidada por ter como colegas alguns dos meus antigos professores, como o Dr. Canedo, Dr. Camacho, Dr. Horácio Bento de Gouveia, Dr. César Figueira César e outros, mas depois habituei-me e até sentia, por parte de alguns professores mais velhos, uma certa proteção em relação a mim, como colega mais nova. Fiz estágio nesta Escola onde lecionei durante oito anos, com interrupção de um ano letivo, em que fui colocada na Escola Secundária de Francisco Franco, para lecionar o 12º ano, que iria ser ministrado pela primeira vez em 1980, em substituição do Ano Propedêutico.

Foi um ano de muito trabalho. Não havia livro de apoio aos alunos. Somente deram-nos o programa e a frequência de um curso em Coimbra para delinearmos em conjunto, a nível nacional, as metodologias e estratégias que deveríamos adotar.

Já na década de oitenta do século passado fui colocada na Escola Secundária de Francisco Franco como Delegada de Orientação Pedagógica, para orientar estágio a seis colegas que tinham acabado o curso de Geografia. Foram dois anos de intenso trabalho, mas enriquecedores em termos profissionais, e que deixaram muitas amizades. Passados esses dois anos optei por continuar a minha vida profissional na Escola Secundária de Francisco Franco onde fui vice-presidente do Conselho Diretivo durante cinco anos e Diretora Executiva durante mais cinco anos.

Com a introdução de um sistema de Unidades Capitalizáveis no Curso Geral Noturno do Ensino Secundário, em 1986, fui convocada pela Secretaria da Educação para dividir os programas do 10º e 11º ano de Geografia em Unidades Capitalizáveis. Foi um trabalho intensivo feito, a maior parte dele, na época de Verão, porque teria de ser implementado no ano letivo seguinte. O dividir os programas em várias unidades, programar as aulas com os respetivos objetivos, sugerir estratégias de desenvolvimento e material a utilizar, ajudou os professores nas atividades letivas e permitiu, a cada aluno, progredir em ritmo próprio numa perspetiva de desenvolvimento individualizado de aprendizagem e de autoformação.

Com a abertura da nova Escola de Hotelaria e Turismo da Madeira, fui convidada para Diretora Pedagógica dessa Escola onde estive mais oito anos. Acabei por me reformar em 2008. Assim foi a minha vida profissional entremeada de trabalhos de investigação, alguns deles já publicados, quer em livros, quer em revistas, e onde houve tempo para acompanhar o início e desenvolvimento da Associação Insular de Geografia.

 

Ao longo da sua carreira, qual o projeto que destacaria? E porquê?

Não sei se poderei chamar projeto ou ambição de não parar, de ir um pouco mais além. Foi quando decidi concorrer ao Curso de Mestrado sabendo, de antemão, que se ficasse admitida teria de me deslocar todas as semanas a Lisboa. Como estava na Direção da Escola e com autorização do Secretário da Educação para a minha deslocação semanal a Lisboa, consegui, com muito esforço pessoal e financeiro, fazer o Mestrado e, posteriormente, o Doutoramento.

Já como Presidente da Associação Insular de Geografia, houve possibilidade de estabelecer um protocolo entre a Universidade Nova de Lisboa e a Associação Insular de Geografia para que fosse ministrado o Mestrado, aqui na Madeira, aos geógrafos interessados. Para isso tivemos o apoio do Professor Doutor José Afonso, que tinha sido meu orientador de Doutoramento. Todas as semanas, professores da Universidade Nova de Lisboa deslocavam-se à Região para lecionar as aulas constantes do currículo do Curso de Mestrado. Se não me engano, foram doze os colegas que conseguiram fazer o Mestrado, o que considero muito positivo e um contributo importante para um maior conhecimento da Região, uma vez que os trabalhos de investigação elaborados pelos alunos deste Curso tiveram como base a realidade madeirense.

Já anteriormente, quando trabalhava na Escola de Hotelaria e Turismo da Madeira como Diretora Pedagógica, tínhamos conseguido fazer um protocolo entre a Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, a Universidade da Madeira e a Escola Profissional de Hotelaria e Turismo da Madeira a fim de dar possibilidade a muitos profissionais que trabalhavam nas áreas de hotelaria e Turismo e que tinham o bacharelato, concluírem a licenciatura. Foram muitos os que aproveitaram esta oportunidade para progredirem na carreira.

 

O escritório do geógrafo é o mundo. Qual foi a viagem mais marcante para si? Conte-nos um pouco da geografia desse lugar.

Não focarei uma viagem, mas alguns dos muitos lugares que me marcaram como geógrafa.

Um deles foi atravessar, de autocarro, o Deserto da Austrália, de Alice Springs até Ayer Rock (Uluru - denominação dada pelos autóctones), passando pelo desfiladeiro de Kings Canyon. Pela primeira vez vi, em Alice Springs, população aborígene. Não devem nada à beleza. Tinham um ar indolente, talvez devido às elevadas temperaturas que se fazia sentir e um olhar pouco amistoso o que parecia indicar que não gostavam de turistas. Atravessar o deserto australiano coberto de terras vermelhas, ferruginosas, semeadas de alguma vegetação, ver os cangurus a saltitar nos campos desnudos de vegetação, fazer o percurso a pé, ainda antes do amanhecer, ao longo do desfiladeiro de Kings Canyon, observar as diferentes tonalidades que o monólito Uluru (de composição arenítica, com 318 metros de altura e 8 Km de diâmetro) toma ao por do sol, nesse deserto sem fim e, à noite, contemplar o mar de estrelas que integram as diversas constelações do Hemisfério Sul, foi uma experiência maravilhosa.

Ainda na Austrália, a visita à Floresta Tropical Húmida de Kuranda, considerada a mais antiga do mundo, num percurso de ida de comboio e de regresso de teleférico, passando por cima de uma vegetação luxuriante onde palmeiras nascem em cima de palmeiras, em que não conseguimos ver o solo devido à abundância de vegetação, foi inesquecível.

Já no Perú, um País com uma grande riqueza histórica, não me deixou indiferente ver como a população da tribo URUS vive nas ilhas flutuantes, no Lago Titicaca, a 3811 metros de altitude. O material utilizado para a construção destas ilhas é uma espécie de junco muito resistente, que nasce nas margens do Lago e a que dão o nome de totora. As casas, se assim se podem chamar, são de uma simplicidade extrema. As mulheres usam sempre chapéu de coco e saias compridas de cores muito garridas. A base da alimentação é o peixe que pescam no lago, fazendo um buraco no junco, no quintal das suas casas. É como estar a viver ainda na pré-história, embora tenham a cidade de Puno, a uma curta distância. Impressionou-me.

 

Que conselho daria a uma recém-licenciada em geografia?

A licenciatura é o início, e não o fim de um longo caminho que há a percorrer e que merece ser constantemente atualizado e enriquecido com novos conhecimentos, novas ideias, novos projetos, quaisquer que sejam as áreas em que irão desenvolver a trajetória profissional.

 

O avanço da tecnologia tem mudado a forma de estudar e de trabalhar. Como imagina o trabalho de um geógrafo daqui a dez anos?

O avanço das tecnologias vieram dar novas ferramentas e enriquecer o trabalho do geógrafo, assim como de todas as outras áreas da Ciência. Mas a forma de fazer ciência geográfica não muda. O trabalho de campo, a observação cuidada do que nos rodeia, detetar as causas dos fenómenos, quer sejam naturais ou provocados pela ação humana, olhar para as consequências ou possibilidades de acontecimentos, continuam a ser primordiais e a base dos estudos de investigação geográfica que desejamos realizar.

 

Numa frase, diga-nos qual a importância da geografia para a nossa sociedade.

A Geografia deverá ocupar sempre um lugar primordial na educação dos jovens. É através desta disciplina que a população conhece e localiza o espaço onde vive e estuda outras regiões mais distantes, levando a compreender a existência de fenómenos naturais, como por exemplo, os sismos e alterações climáticas, e de atos humanos de natureza ideológica, económica ou social, muitas vezes incompreensíveis, à primeira vista. Saber observar e pensar o espaço, compreender a espacialidade diferencial poderá ajudar a encontrar soluções para um melhor ordenamento do território e definir as causas que conduzem a guerras e atritos políticos entre povos na tentativa de expansões territoriais, de novas ocupações do espaço, espaço esse dado a conhecer muitas vezes pelo geógrafo e aproveitado pelos políticos. Yves Lacoste foca bem estes aspetos no seu livro “A Geografia serve, antes de mais, para fazer a guerra”.

 

Sendo uma das fundadoras da Associação Insular Geografia, quais foram as principais motivações que a fizeram avançar na criação desta Instituição?

A ideia não partiu de mim mas de um grupo de jovens geógrafos, todos eles a desempenhar, nessa altura, funções de docência em diversas escolas da Região. Convidaram-me para Presidente da Mesa da Assembleia Geral dessa Instituição que estava a nascer. Não os conhecia, mas considerei que seria muito proveitoso para os colegas que trabalhavam nesta Região, longe do Continente, ter uma base de apoio científico e pedagógico, sempre que precisassem. Essa base de apoio poderia ser dada por uma Associação, neste caso a Associação Insular de Geografia. Também foi uma forma de conhecer e trabalhar com colegas de uma geração mais jovem, com novas ideias e novos hábitos de trabalho. Foi um trabalho gratificante e que tem dado os seus frutos ao longo de tempo.

 

Qual o maior desafio que, na sua opinião, se coloca à AIG, na atualidade?

Para além dos muitos projetos que a Associação Insular de Geografia tem estado a desenvolver, não deverá descurar o apoio aos geógrafos que vivem e trabalham na Região, através de ações de formação, colóquios, seminários, conferências. Sei que muitas vezes se torna frustrante a participação de poucos colegas nestes eventos, mas não podemos parar. Os conhecimentos, mais do que nunca, estão a evoluir a uma velocidade estonteante e é preciso acompanhar essa evolução, não deixá-los parar no tempo.

Publicado por:

Data de Publicação:

01 Mar, 2023 às 09:36

(Editado: 01 Mar, 2023 às 09:37)

Partilhar:

Imagens e Vídeos:

Ver Todas as Opiniões

Contacte-nos

Segunda a Sexta
(9h00 às 13h00 / 14h00 às 17h00)

Morada

Rua Doutor João Abel de Freitas n°41
Edifício Centro
9300-048 Câmara de Lobos

Telefone

(+351) 291 944 757