Artigo/Entrevista

18 ANOS | 18 GEÓGRAFOS

Entrevista Ilídio Sousa

Quem é o geógrafo Ilídio Sousa?

Sou um geógrafo madeirense, nascido em 1973 no extremo oeste da freguesia de São Martinho, próximo da Ribeira dos Socorridos, numa época em que toda aquela área tinha ainda um cariz predominantemente rural. As ligações familiares a Câmara de Lobos e a Santo António, bem como a proximidade ao Funchal, marcaram as primeiras décadas de vida e influenciaram, sem sombra de dúvida, a forma como o atual geógrafo interpreta o território. As constantes deambulações entre o Funchal, marcadamente urbano e cosmopolita, Câmara de Lobos, claramente periurbano e com uma forte ligação ao mar, e o sítio do Engenho Velho, em Santo António, profundamente rural e isolado, permitiram uma diversidade de experiências que ainda hoje me ajudam a compreender as singularidades, desafios e oportunidades do nosso território. Talvez por isso, sou um Geógrafo que privilegia o conhecimento da interação do Homem com o Território e tem dificuldade em compreender a excessiva segmentação ou especialização da Ciência Geográfica nas vertentes física, humana ou das geotecnologias.

 

Quando descobriu o seu interesse pela ciência geográfica?

Acho que o interesse pela ciência geográfica nasce inconscientemente, ainda na infância, quando acompanhava quase religiosamente os documentários sobre a vida na terra transmitidos pela RTP, à época o único canal disponível, que transmitia alguns dos melhores documentários da BBC ou da National Geographic. Quem não se lembra do “Mundo Submarino” de Jacques Cousteau ou “A Vida na Terra” de David Attenborough. Mas foi no ensino secundário que aprofundei o gosto pela Geografia, sobretudo graças à forma como a professora Ana Pestana nos transmitia os conhecimentos e nos despertava para a compreensão das inter-relações entre o Homem e o ambiente biofísico. Foi ela a responsável pelo meu ingresso no curso de Geografia e a minha primeira referência, enquanto aspirante a geógrafo.

 

Em que instituição de ensino superior se formou? Qual era a sua unidade curricular preferida?

Sou licenciado em Geografia pela Universidade de Lisboa, atual Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) e realizei o mestrado em Gestão do Território, com especialização em Ambiente e Recursos Naturais, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH).

Ao longo da licenciatura tive uma especial predileção pelas unidades curriculares da vertente humana, mas no mestrado enveredei pela vertente física, em especial pelo estudo dos riscos naturais, onde as relações entre a socio-economia e o ambiente biofísico são mais determinantes.

 

Sendo um dos fundadores da Associação Insular de Geografia, como vê a evolução desta instituição nos seus dezoito anos de existência?

A fundação da Associação Insular de Geografia teve por finalidade potenciar na Região Autónoma da Madeira, a investigação, o desenvolvimento e a inovação no âmbito da Ciência Geográfica. Relembro que em 2005, tal como ainda acontece, a Região não disponha de qualquer licenciatura ou mestrado nesta área, o acesso à formação contínua ou especializada dos técnicos e docentes de Geografia era escassa e a investigação e desenvolvimento nesta área bastante residual. Estas necessidades, aliadas à chegada de uma nova geração de geógrafos recém-licenciados, provenientes de várias instituições de ensino superior do país, potenciaram a criação desta associação que, em minha opinião tem cumprido os seus propósitos.

Nestes 18 anos, a formação nas diferentes áreas de especialização da geografia tem sido uma constante, até com a promoção de um curso de mestrado, em parceria com a FCSH. Os eventos técnicos e científicos têm acontecido com regularidade e nas mais variadas áreas de especialidade. A investigação e o desenvolvimento registaram um acréscimo significativo, por via do trabalho geógrafos regionais, mas também dos inúmeros projetos desenvolvidos pela AIG.

Todavia, em minha opinião, talvez o maior mérito destes 18 anos seja o contributo desta instituição para a afirmação dos Geógrafos e da Ciência Geográfica na Região Autónoma da Madeira, levando a que atualmente sejamos cada vez mais reconhecidos e requisitados para as mais variadas áreas da administração regional e local, bem como, para empresas dedicadas ao planeamento e ordenamento do território, urbanismo, cartografia, geotecnologias ou consultoria, em domínios cada vez mais variados, como o ambiente, o turismo, os transportes, a saúde ou a avaliação de políticas.

Sendo uma associação jovem, que atinge agora a sua maioridade, considero que os anos mais difíceis de afirmação e criação de identidade foram ultrapassados com sucesso, pelo que o grande desafio será a consolidação do trabalho desenvolvido e o aproveitamento de novas oportunidades.

 

Ao longo da sua carreira, qual o projeto que destacaria? Porquê?

Ao longo da minha carreira tive a felicidade de participar em vários projetos que me deram particular satisfação, pelo que tenho alguma dificuldade em selecionar apenas um. Prefiro antes dizer que existem três projetos que, por razões diferentes, me orgulho especialmente de ter contribuído. Por ordem cronológica, o Projeto Educação para a Segurança e Prevenção de Riscos, criado na sequência da aluvião de 20 de fevereiro de 2010, que visava a formação e sensibilização dos cidadãos para prevenção de riscos naturais e tecnológicos, que continua, 12 anos depois, a ser implementado, constituindo-se como o maior e mais abrangente projeto de sensibilização alguma vez desenvolvido na RAM. Alguns anos mais tarde, destaco a elaboração do Programa Especial do Cabo Girão, promovido pelo IFCN e aprovado em 2021, que constituiu o primeiro Programa Especial desenvolvido em Portugal. Mais recentemente, não posso deixar de destacar a reforma estrutural do Cadastro da RAM, que está a ser promovida pela Direção Regional do Ordenamento do Território, que passa pela digitalização da informação cadastral, pela simplificação e modernização de procedimentos e pela diversificação dos canais de prestação de serviços, que constitui uma verdadeira mudança de paradigma, com reflexos diretos na eficiência dos serviços públicos e na relação com os cidadãos e empresas.

 

Atualmente é o Diretor Regional do Ordenamento do Território, como é que a ciência geográfica o tem auxiliado na tomada de decisões?

Tenho por hábito referir que o Ordenamento é um processo de organização do território que visa perspectivar o futuro que queremos, com base nos recursos biofísicos e socioeconómicos de que dispomos. Nesse sentido, sendo a geografia uma ciência de encruzilhada entre as ciências naturais e as ciências sociais, que privilegia o estudo da estrutura e dinâmica dos territórios, estou certo que a minha formação em Geografia contribui para uma melhor compreensão dos diferentes fatores em presença e para o desenvolvimento de cenários futuros mais realistas e fundamentados.

 

A orografia da Ilha da Madeira constitui uma condicionante no âmbito do Ordenamento e Planeamento do Território. Na sua opinião, que outros desafios a Região enfrenta neste domínio?

Esta é uma questão que, por si só, daria para uma longa conversa. Mas vou tentar resumir a minha opinião a algumas ideias chave. Antes de mais, importa perceber que para além de uma orografia vigorosa, onde cerca de 66% do território apresenta declives superiores a 25%, somos também um território ultraperiférico, com uma economia baseada predominantemente no turismo, com uma forte dependência da importação e uma limitada oferta de matérias primas e recursos naturais. Além disso, 65% do território são áreas com estatuto de proteção e como tal de utilização muito condicionada. Paralelamente, temos uma população de aproximadamente 250 000 habitantes, com acentuadas assimetrias de distribuição, onde a faixa litoral sul, entre Machico e a Calheta, congrega 92,4% dos habitantes, enquanto a costa norte apenas 5,6% e o Porto Santo 2%. Em termos económicos, os municípios do Funchal, Santa Cruz e Câmara de Lobos concentram 75% do emprego e 90% do Valor Acrescentado Bruto da Região. E como referi, o Turismo é o principal motor económico da Região, mas o Funchal e Santa Cruz concentram 82% das unidades hoteleiras.

Este é o contexto que temos de assimilar e que se traduz em grandes desafios, que no âmbito do Ordenamento do Território passam principalmente por promover um sistema urbano policêntrico, afirmando as principais cidades como motores de competitividade interna e externa, reforçar a cooperação interurbana e rural-urbana, atenuar assimetrias de desenvolvimento, diversificar e aumentar a produtividade da economia, dinamizar os potenciais locais e o desenvolvimento rural, reforçar a conectividade interna e externa, gerir os recursos naturais de forma sustentável, tornar mais eficaz a prestação de serviços às populações, prevenir catástrofes naturais, aumentar a resiliência da sociedade e promover a governança territorial.

Todavia, a estes desafios temos ainda de acrescer outros de cariz mais global, mas com reflexos na região, como sejam as mudanças climáticas, manifestadas no aumento da temperatura, na alteração dos padrões de precipitação ou na subida do nível do mar. As mudanças tecnológicas, como a digitalização, a automação e a robótica ou a mudança de paradigma energético. As mudanças sociodemográficas, como a quebra do crescimento natural, o envelhecimento populacional ou a intensificação dos movimentos migratórios. No âmbito económico e social, a emergência de modelos económicos alternativos e de uma sociedade mais multipolar e participativa, com novas exigências ecológicas e de bem-estar.

Apesar de tudo, acredito que continuaremos a demostrar capacidade para transformar os desafios em oportunidades, promovendo um desenvolvimento cada vez mais sustentável do nosso território. Basta analisar o novo Programa Regional de Ordenamento do Território da Região Autónoma da Madeira, aprovado no início de 2023, para perceber que a estratégia de desenvolvimento territorial da Região responde à generalidade destes desafios e impõe objetivos de desenvolvimento ambiciosos do ponto de vista económico, social e ambiental.

 

Costuma-se dizer que o “escritório do geógrafo é o mundo”. Qual foi a viagem mais marcante para si? Conte-nos um pouco da geografia desse lugar.

Apesar de já ter pisado os 5 continentes, não tenho qualquer dúvida em escolher a viagem à Austrália como a mais marcante. Por tudo! Por, aos 17 anos, ter a oportunidade de viver durante um ano num país gigantesco, que é um autêntico caldeirão cultural, tamanha a diversidade étnica e civilizacional. Um país que pela sua dimensão física é simultaneamente um continente, com uma enorme diversidade natural, que vai da grande Barreira de Coral, às extensas pastagens, bosques e prados da Cordilheira Australiana, às infindáveis praias do West Austrália ou ao Deserto Australiano (a terra sagrada dos aborígenes). É a terra dos coalas (que significa o animal que não bebe) e dos cangurus, mas também do lobo da tasmânia, do ornitorrinco e de muitas outras espécies que compõem uma fauna extraordinariamente rica e em muitos casos perigosa.

Um país rico em recursos naturais como o carvão, gás natural, ferro ou ouro, mas com um setor primário fortíssimo, que o torna o maior produtor de lã do mundo e um dos maiores de carne bovina. Na agricultura é uma potência mundial na produção de trigo, cevada, cana-de-açúcar e também de vinho. No turismo está entre os 10 países do mundo com maiores receitas. Na última década a sua economia cresceu a uma taxa média de 3,6%, sendo um dos poucos países do mundo que conseguiu evitar a recessão durante a crise econômica de 2008-2009.

Os principais desportos nacionais são o críquete, o futebol australiano e o rugby, enquanto o “nosso” futebol assume o nome de soccer e apenas nos últimos anos se vem afirmando, impulsionando pelas transmissões da Liga dos Campeões da UEFA, do campeonato inglês e pela ascensão da seleção nacional, os “Socceroos”.

É o sexto maior país do mundo, em extensão territorial, mas tem uma população de apenas 25 milhões de habitantes, não faltando espaço para a fixação humana e para as infraestruturas urbanas, que são geralmente desenvolvidas de forma planeada e muito bem ordenada, o que contribui significativamente para a elevada qualidade de vida dos cidadãos.

A título de exemplo, a construção de novas residências apenas é permitida em loteamentos previamente aprovados e infraestruturados com rede viária, água, luz, saneamento e serviços. E onde se desenvolvem projetos de planeamento como o recentemente promovido pela cidade de Melbourne, que com mais de 9000 Km2 e uma população de quase 5 milhões de habitantes, implementou um plano denominado de “bairro de 20 minutos” que visou tornar a cidade sustentável, acessível, inclusiva e segura, possibilitando que os seus habitantes tivessem ao dispor tudo o precisam a apenas 20 minutos de casa, seja caminhando, utilizando os transportes públicos ou outros meios de transporte. Ou seja, qualquer cidadão pode ter acesso ao comércio (shoppings, lojas, restaurantes), serviços de saúde (hospitais e farmácias), educação (escolas, bibliotecas e universidades), lazer (praças, parques, espaços verdes e locais para prática desportiva), bem como oportunidades de trabalho a apenas 20 minutos de casa.

Este é apenas um exemplo, mas que ilustra o pensamento australiano e a forma como lidam com os recursos naturais e humanos à sua disposição. Em suma, um país fascinante, que me marcou e que continua a ser uma inspiração.

 

Que conselho daria a um recém-licenciado em geografia?

Nunca esquecer que os conhecimentos e as competências adquiridas ao longo da licenciatura, assim como a especialização que venham a fazer posteriormente, são apenas o ponto de partida para o desenvolvimento das capacidades científicas e técnicas que terão de mobilizar no desempenho da vossa atividade. E que o desenvolvimento das competências interpessoais, como a autonomia, a capacidade para o trabalho em equipa e abertura para a aprendizagem ao longo da vida são fatores fundamentais para uma carreira de sucesso.

 

Numa frase, diga-nos qual a importância da geografia para a nossa sociedade.

A Geografia é uma das mais poderosas ferramentas para descobrir, descrever, planear e ordenar um território em constante transformação.

 

 

Publicado por:

José Ilídio Jesus Sousa

Data de Publicação:

05 Abr, 2023 às 12:02

(Editado: 05 Abr, 2023 às 12:55)

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