Artigo/Entrevista

18 Anos | 18 Geógrafos

João Daniel

1. Quem é o geógrafo João Daniel?

Começo por manifestar a minha gratidão por se terem lembrado de mim. Esta rubrica é muito interessante, pois permite dar a conhecer ao ‘Mundo’, neste caso a nossa região, um conjunto de cidadãos que de outra forma não teriam essa oportunidade, o acesso aos palcos mediáticos. Não é que isso me preocupe, pois eu gosto mais de observar do que ser observado, mas é sempre bom ser reconhecido por algo que possa ter feito de bom.

Respondendo agora à pergunta que me coloca, o geógrafo João Daniel é um cidadão, que gosta de exercer os seus direitos de cidadania, isto é, que gosta de se manter actualizado sobre o que se passa no Mundo (sou um consumidor diário de notícias, de jornais e televisão), que tenta cumprir com as suas obrigações e deveres, que gosta de dar a sua opinião, sempre fundamentada, evitando com isso a especulação, que gosta muito de trabalhar, de responder aos desafios da actividade profissional, e que tenta sempre responder, na medida do possível, aos convites ou solicitações que lhe são, com alguma frequência, endereçados.

Este gosto pela informação também se manifesta pela disponibilidade em querer aprender mais, pois não perco uma oportunidade para adquirir novos conhecimentos, o que me dá uma especial satisfação

Num tom mais intimista, passei há dias a pertencer, estatisticamente, ao grupo dos Idosos. Utilizo a referência à estatística demográfica porque, para além de o fazer em tom de brincadeira, a verdade é que, há pouco mais de 2 meses, fiz 65 anos e o rótulo estatístico não perdoa, mas é só mesmo isso, sentindo ainda vigor suficiente para continuar com as actividades de que gosto muito. Vou 3 a 4 vezes por semana ao Ginásio e espero continuar com as minhas caminhadas pela serra e passeios no mar, de preferência à vela.

 

 2.Quando descobriu o seu interesse pela ciência geográfica?

Quando era aluno do Liceu, a disciplina que, como se costuma dizer, me enchia as medidas era a de Ciências Físico-Químicas. Perceber o funcionamento do Universo através do estudo dos movimentos, das forças, as reacções químicas, a electricidade, etc., era qualquer coisa de extraordinário. Como também gostava muito do cálculo, esta disciplina permitia-me a resolução de problemas, onde me sentia bastante à vontade, aliando a teoria à prática. Com base nesta minha aptidão e gosto, tencionava estudar engenharia, mecânica ou electrotécnica.

Entretanto, acabei o secundário, na altura o 7.º ano do Liceu, em pleno PREC, as faculdades tinham estado fechadas um ano, criaram o serviço cívico e depois o ano propedêutico, que funcionava com aulas gravadas em vídeo, como a telescola. Isto para dizer que se tratou de um período algo confuso que me fez desviar as atenções da continuação dos estudos, até porque me envolvi um bocado na luta político-partidária. Por exemplo, no Liceu fiz parte do movimento associativo estudantil. Posteriormente acabei por ir trabalhar para um laboratório de veterinária, para o qual fiz formação em Lisboa.

No ano em que fiz 21 anos, tal como acontecia à grande maioria dos jovens rapazes no país, fui cumprir o Serviço Militar Obrigatório. Devo dizer que atravessei toda a minha juventude sabendo que teria de “ir para a tropa”, e que nunca me passou pela cabeça tentar fugir a este desígnio, como muitos faziam, apesar de saber que poderia ser mobilizado para a guerra do ultramar, tal como aconteceu com o meu irmão mais velho. Em 1979 fui incorporado na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, onde frequentei o Curso de Oficiais Milicianos. É a partir daqui que os meus interesses começam a dar uma volta. O serviço militar muito ligado ao trabalho no exterior, o uso da cartografia militar, quer para a progressão no campo quer para o cálculo de tiro, deram-me outra perspectiva de vida e comecei a interessar-me pelas coisas do território. A especialidade que fiz no SMO, a de armas anticarro (de combate) e morteiros médios, implicou a que durante a recruta, para além do exigente treino físico, tivesse aulas de cálculo de tiro, que necessitava, entre muitos factores, de uma rigorosa observação indirecta do terreno, já que o morteiro é uma arma de tiro curvo para atingir o inimigo ultrapassando os obstáculos da superfície terrestre. Com esta especialidade, que permitiu aliar o meu gosto pelo cálculo com o trabalho no campo, obrigou-me também a dar formação, em sala de aula, aos soldados que se preparavam para obterem o posto de Cabos.

Passado cerca de 2 anos, com a passagem à disponibilidade, que significa concluir o SMO, com o posto de Alferes, retomei a minha antiga actividade profissional, sempre com o bichinho de retomar os estudos. Alguns anos depois comecei a preparar o acesso à faculdade e ingressei na Licenciatura em Geografia.

 

3. Em que instituição de ensino superior se formou? Qual era a sua unidade curricular preferida?

Foi na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A Faculdade de Letras de Lisboa, tal como a de Coimbra e a do Porto, integrava diversos cursos de letras e de humanidades, sendo um deles o de Geografia, que era leccionado no Departamento de Geografia. Mais tarde este departamento autonomizou-se, creio que em 2008, e deu origem ao actual IGOT, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território. Sobre a unidade curricular preferida, não é fácil responder, pois tanto gosto da geografia física como da geografia humana, razão pela qual trabalho em ambas as áreas. Durante o meu curso a disciplina que mais gostei foi a de Geografia Regional, já no terceiro ano, pois nesta já pude aplicar todos os conhecimentos adquiridos, tanto de geografia física como da humana, com a vantagem de também utilizar a estatística de que tanto gostava para, por exemplo, produzir mapas temáticos. Naquela altura a elaboração de mapas era à “unha”, como se costuma dizer, pois os SIG, de que já ouvíamos falar, ainda não tinham chegado à nossa faculdade. A propósito da necessidade em manter-me actualizado, tal como referi há pouco, logo depois de concluída a licenciatura procurei adquirir novos conhecimentos, e um deles foi exactamente em SIG.

 

4. Na sua carreira profissional já teve a oportunidade de ser docente de Geografia. Como recorda essa experiência?

Concluída a licenciatura, as saídas profissionais que existiam eram maioritariamente no ensino, o que ocorria em muitos licenciados de várias formações. Por exemplo, no meu tempo de estudante liceal tive alguns professores recém-licenciados, que exerceram a docência enquanto não conseguiam ingressar numa carreira mais compatível com a sua formação. No caso da geografia, de facto a administração pública e as autarquias não estavam despertas para incluírem nos seus quadros técnicos formados em geografia. Deste modo, foi com muita naturalidade que comecei a leccionar. Até já tinha alguma experiência do tempo da tropa.

Costumo dizer que poder ensinar é qualquer coisa de extraordinário, e eu gostava imenso de poder contribuir para o alargar de horizontes dos alunos que me passavam pelas mãos. O problema que sentia, e que se agudizou com o passar dos anos, devido a um conjunto de circunstâncias, muitas vezes extrínsecas à própria escola, é que os alunos começaram a não querer aprender, pois isso dava-lhes algum trabalho e eles não estavam interessados nesse esforço. Como pode imaginar, não é fácil querer ensinar alguém que não está interessado na aprendizagem. E eu sou daqueles que professam o princípio expresso no ditado “não lhe dês o peixe, ensina-o antes a pescar”. Neste contexto, começou a ser penoso o acto da docência, o que se verifica na generalidade das disciplinas, tal como vamos sabendo pelos inúmeros problemas que os docentes enfrentam nas escolas, e que eu conheço muito bem, cujos casos de indisciplina têm sido amplamente noticiados, e que estão a transformar a instituição escolar numa arena, no seu pior sentido.

Em todo o caso, como eu costumo dizer, uma vez professor, professor para sempre, e eu gosto de poder ensinar. Apesar de presentemente não estar a leccionar numa escola, mantenho viva essa componente da minha actividade profissional, pois tenho vindo a preparar alguns alunos para o exame nacional de geografia de 11.º ano, e também fui convidado para leccionar na Universidade da Madeira, a tempo parcial, uma disciplina relacionada com a sustentabilidade ambiental. Não é geografia, mas com ela está relacionada.

 

5. Atualmente, trabalha na Direção Regional Regional do Ambiente e Alterações Climáticas. Ao longo da sua atividade profissional nesta instituição, qual o projeto que destacaria? E porquê?

Sim, isso decorreu de um convite feito há já alguns anos, e estou na DRAAC em regime de mobilidade. Já é a segunda vez que passo por esta experiência. Como pode imaginar, é um trabalho completamente diferente, mas muito aliciante. As condições de trabalho são completamente diferentes, o ritmo é diferente, não tenho campainhas a tocar nem alunos mal-educados à minha volta. É um trabalho muito interessante, que envolve a produção de pareceres técnicos sobre determinados projectos, onde tenho a oportunidade de emitir uma opinião fundamentada, quer na legislação que regula o tema em causa, quer pela consulta de estudos e relatórios, quer ainda na sensibilidade pessoal sobre o tema em causa que decorre dos meus conhecimentos e competências. Acho que tenho sido muito útil nos assuntos por mim tratados. Trabalho também no desenvolvimento de projectos candidatos a financiamento de Programas da União Europeia, nomeadamente do INTERREG MAC, projectos que se revestem do maior interesse no âmbito de competências da Direcção Regional. As áreas onde desenvolvo trabalho é nas emissões atmosféricas e qualidade do ar. No início dediquei-me muito à implementação da Estratégia de Adaptação às Alterações Climáticas na RAM, e actualmente estou mais dedicado ao acompanhamento do Regime CELE (Comércio Europeu de Licenças de Emissão de GEE) na Madeira e ao Inventário de Emissões por Fontes e Remoções por Sumidouros de Poluentes Atmosféricos da RAM, que é o projecto que destaco respondendo à sua pergunta. Há ainda outras áreas em que sou solicitado a intervir, consoante as necessidades que aparecem, mas também existem outras ideias para desenvolver que a seu tempo virão à luz do dia.

 

 6.Integra os órgãos sociais da direção da AIG. Como vê a evolução desta instituição ao longo dos seus dezoito anos de existência?

A evolução foi acentuada e acompanhou a mudança do perfil dos seus sócios. Como sabemos, a AIG surgiu a partir de uma delegação de uma associação de professores de geografia, mas a pouco e pouco passou a ser uma associação de geógrafos, nas mais diversas profissões, e não tanto de uma associação de professores de geografia. Como é fácil de perceber, esta evolução decorre do facto de os geógrafos passarem a ser quadros em diversas instituições da administração pública regional e nas autarquias locais. Todavia, esta mudança trouxe o reverso da medalha, pois estes novos geógrafos, incluindo os jovens professores que têm renovado os quadros das escolas, são menos activos no movimento associativo, numa quebra que se assiste noutras instâncias, como por exemplo no movimento sindical.

De muito bom na AIG, excelente mesmo, tem sido o investimento no Núcleo de Estudos, com o qual a Associação tem tido uma enorme projecção na RAM, produzindo uma grande variedade de estudos e relatórios, de enorme interesse científico, e financeiro para a AIG, a que acresce o facto de proporcionar estágios e experiências profissionais a jovens licenciados.

 

 7.Qual o maior desafio que, na sua opinião, se coloca à AIG, na atualidade?

Quando se fala em desafios, estamos a falar do futuro. E o futuro, que é incerto por definição, é algo que, devo dizer, me preocupa e deve preocupar a todos. Como se depreende das considerações que teci anteriormente, o principal desafio na actualidade é a angariação de mais sócios e a mobilização de todos à volta das questões que interessam à geografia e que a AIG muito bem representa. Não nos podemos esquecer da questão demográfica da substituição das gerações, a necessidade de os mais novos substituírem os mais velhos e garantirem o funcionamento futuro da Associação.

Sendo assim, no início da AIG havia uma grande participação. Nos eventos que se organizava notava-se uma certa mobilização e interesse dos sócios. Por exemplo, nas acções de formação havia sempre um grande número de inscritos. Presentemente assistimos a acções de formação que nem chegam a ocorrer por falta de interessados. É um assunto preocupante em que importa investir, por forma a rendibilizar e aumentar a massa crítica do Centro de Formação da associação.

 

8. Costuma-se dizer que o “escritório do geógrafo é o mundo”. Qual foi a viagem mais marcante para si? Conte-nos um pouco da geografia desse lugar.

Não tenhamos dúvida dessa afirmação. De facto, e como todos sabemos e se aprende na faculdade, o objecto da geografia é a superfície terrestre, que deve merecer a nossa atenção, a nossa capacidade de observar para melhor compreender. Recordemo-nos do “olho observador” que o Prof. Orlando Ribeiro tinha na sala aulas, e que actualmente está reproduzido no auditório homónimo do IGOT. Quando leccionava, nas minhas conversas iniciais, referia a importância da nossa disciplina geográfica, que nos permitia conhecer o mundo sem sair da sala de aula, já que a opção ideal, a de viajar pelo mundo fora, não estava ao nosso alcance.

A viagem mais marcante, curiosamente feita num grupo de geógrafos, foi ao Egipto, que incluiu, como não podia deixa de ser, um cruzeiro pelo Rio Nilo e visitas a praticamente todos os símbolos daquela impressionante civilização dos Faraós, as Pirâmides, Tumbas, a Esfinge de Gizé, Vale dos Reis, Vale das Rainhas, Museu do Cairo, Mesquitas, etc., um impressionante e intrigante património construído, como é apanágio de todas as grandes e antigas civilizações.

Como se sabe, e já Heródoto o tinha dito, o Egipto é um dom do Nilo, isto é, o Egipto só existe como país, um enorme território que ocupa uma extensa área no deserto do norte de África, porque as águas que alimentam o rio têm origem em dois grandes lagos, em especial o Lago Vitória, no Uganda, numa região equatorial e de grande altitude. Ao longo da descida do rio fomos parando em diversas localidades para as visitas aos pontos de interesse. Numa destas paragens tivemos a oportunidade de visitar um “nilómetro” bem conservado, isto é, um equipamento, na prática um grande poço, onde os cobradores de impostos mediam o nível das cheias nas margens do rio para, a partir daí, calcularem o nível de impostos a cobrar aos egípcios. O raciocínio era simples; quanto maior o nível de água, maior seriam as colheitas.

As cheias, como acontece em muitos rios, é fundamental para a irrigação e fertilização dos solos, com consequências mais ou menos positivas para a produção agrícola. No caso do Rio Nilo, todo este regime ficou profundamente alterado com a construção da enorme barragem de Assuão, no Sul do país. Foi uma aposta ponderada entre as necessidades agrícolas e a produção de energia hidroeléctrica. Um bom exemplo para a importância de se avaliar as intervenções no território antes de se tomarem as decisões, um campo onde a ciência geográfica tem um enorme potencial. Na cidade do Cairo, a capital, fizemos algumas visitas, ao Museu, a uma feira, uma Mesquita em alabastro (rocha metamórfica), mas infelizmente, por razões de segurança e de programação, com muita pena minha, não pudemos circular livremente pelas ruas, o que só fizemos em trajectos de autocarro, e eu teria gostado imenso de sentir a cidade, de cheirar a cidade, de observar os usos e costumes da população.

 

9. Que conselho daria a um recém-licenciado em geografia?

O meu conselho aplica-se a qualquer licenciado. A licenciatura é um meio que prepara um cidadão para começar a aprender mais coisas. Isto para dizer que a formação tem de ser ao longo da vida, pois nunca sabemos o suficiente, e vão surgindo, a um ritmo bastante acelerado, novas ideias e novas tecnologias. Para o geógrafo, o cientista da disciplina de charneira, e isto não constitui um cliché, tem de ter a capacidade trabalhar em equipa multidisciplinar e estar preparado para, senão liderar a equipa, pelo menos fazer a síntese entre as diversas disciplinas. A geografia está em todo o lado, e o conhecimento do território, uma das nossas áreas de trabalho por excelência, tem de ser profundamente incluída em todos os estudos e em todas as decisões. O geógrafo tem de estar preparado para trabalhar em qualquer área e em qualquer assunto. Quando nos deparamos com qualquer dificuldade, que ultrapasse o nosso conhecimento, só temos um caminho a seguir, que é pesquisar para saber como se faz ou perguntar a quem sabe. Para rematar esta pergunta, refiro que conheço muitos geógrafos que exercem profissões para as quais pouco ou nada sabiam, mas que tiveram a capacidade de se prepararem para esses desafios.

 

 10. Numa frase, diga-nos qual a importância da geografia para a nossa sociedade.

Bem, a resposta já está de alguma forma respondida através das considerações anteriores, mas não quero perder a oportunidade para reforçar algumas ideias. Eu diria que geografia é crucial para a nossa sociedade, pois fornece a compreensão espacial e contextualização dos fenómenos naturais e humanos, orientando decisões, políticas e práticas que moldam a nossa relação com o ambiente e as interacções sociais. É a tal ciência de charneira entre as ciências físicas, biológicas e sociais, que permite fazer a ponte na compreensão do espaço que nos rodeia e nas relações entre homens e ambiente. Em suma, estamos a falar do conhecimento sobre o território, que é muito caro aos geógrafos. Numa perspectiva mais antrópica, o território é um dos principais conceitos da Geografia e envolve o estabelecimento de relações de poder num espaço geográfico, aquilo a que podemos considerar como o habitat de grupos humanos, os quais, pelas relações históricas, políticas, económicas e culturais, desenvolvem uma forte identificação com o mesmo. Mas esta consciência sobre o uso do território tem de servir para evitar ou resolver muitos problemas relacionados com a sustentabilidade. Eu costumo dizer que, se em muitas decisões sobre o espaço houvesse o cuidado de ouvir os geógrafos, muitos problemas teriam sido evitados.

 

 

 

 

 

Publicado por:

João Daniel Gomes Luis

Data de Publicação:

12 Dez, 2023

(Editado: 13 Dez, 2023)

Partilhar:

Imagens e Vídeos:

Ver Todas as Opiniões

Contacte-nos

Segunda a Sexta
(9h00 às 13h00 / 14h00 às 17h00)

Morada

Rua Doutor João Abel de Freitas n°41
Edifício Centro
9300-048 Câmara de Lobos

Telefone

(+351) 291 944 757