Artigo/Entrevista

18 Anos | 18 Geógrafos

Sérgio Lopes

1. Quem é o geógrafo Sérgio Lopes?

Sérgio Lopes nasceu no Funchal em 1979, mais precisamente em Santo António, num mundo vincadamente rural, onde havia grande contacto com a natureza, crescíamos ao ar livre. A experiência de crescer num mundo rural tradicional, representou também uma riqueza de aprendizagens, de valores que trazemos connosco para a vida.    

 

2. Em que instituição de ensino superior se formou? Qual era a sua unidade curricular preferida?

A minha licenciatura em Geografia, na variante de Geografia Física e Ordenamento do Território, foi realizada na Universidade de Lisboa, e concluída em 2003. Depois, em 2008, fiz um mestrado em Geografia, na área de especialização em Clima e Sociedade, também na Universidade de Lisboa. E porque havia muitos temas que me suscitavam curiosidade científica, decidi avançar para o Doutoramento no ramo de Geografia, especialidade de Geografia Física, com a tese intitulada: “Clima e Ordenamento do Território no Funchal”, no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa. E em novembro de 2015, lá estava eu no imponente edifício da Reitoria, perante os senhores Doutores, para explicar e defender em 15 minutos o resultado de anos de investigação, no final, como manda a tradição, aguardámos no corredor pelo veredicto, anunciado com pompa e circunstância, aprovado com louvor e distinção.     

Desde o primeiro ano da licenciatura, decidi enveredar pela Geografia Física, e fiz várias cadeiras que me cativaram bastante, desde a Climatologia, à Geomorfologia (que estuda as formas do relevo e as relaciona com a geologia e o clima), passando pela Dinâmica de Vertentes, pela Hidrologia Continental e Fluvial, pela Biogeografia, pela Dinâmica dos Sistemas Litorais, etc.

Mas talvez a Climatologia seja a área de investigação que sempre me suscitou maior interesse, justamente por se tratar de uma disciplina com uma componente de interdisciplinaridade vincada. Quanto mais não seja porque o sistema climático é um sistema composto, constituído pelos subsistemas atmosfera, hidrosfera, criosfera, litosfera e biosfera. 

 

3. Quando descobriu o seu interesse pela ciência geográfica?

Na verdade, o interesse pela geografia e pela ciência no geral foi, e continua a ser, um processo de descoberta contínua, que começou, talvez, no ensino secundário e que ganhou dimensão durante a própria licenciatura.

Ao longo do meu percurso de ensino tive a sorte e o privilégio de contactar com professores marcantes, primeiro no secundário, na Escola Francisco Franco, e depois na Universidade, e isso foi importante para a consolidação do meu percurso profissional.

Em minha opinião é saudável nutrirmos grande admiração pelos docentes. Estamos a falar de pessoas da ciência, com provas dadas, que foram os melhores nas suas áreas de investigação e, por isso, eram figuras altamente respeitadas, fontes de inspiração, cujo impacto foi muito além do ensino formal, sobretudo também pela sua dimensão humana.

Por outro lado, convém relembrar a importância que teve a Escola de Geografia de Lisboa, fundada pelo Professor Doutor Orlando Ribeiro, um dos geógrafos mais proeminentes do século XX, que deixou um legado valioso, e pelo Professor Doutor Ilídio do Amaral, com especial interesse no estudo das regiões tropicais. A Professora Doutora Suzanne Daveau, mulher de Orlando Ribeiro, foi igualmente uma personalidade marcante da Geografia portuguesa, que atualmente, com 98 anos, continua a dar provas do seu empenho na divulgação do conhecimento científico. Entre os trabalhos da Professora Suzanne Daveau há que salientar os artigos que publicou sobre a glaciação quaternária na Serra da Estrela, mas também produziu obras ainda hoje fundamentais para o entendimento do clima (ou dos climas) de Portugal Continental.

O Professor António de Brum Ferreira (de quem fui aluno), como discípulo que foi de Orlando Ribeiro e de Suzanne Daveau, deu continuidade à atividade científica dos seus mestres, com especial interesse pelos temas de Geomorfologia, em particular no que se refere a formações periglaciárias. É dele um valioso trabalho, publicado em 1981, sobre manifestações periglaciárias de altitude na Ilha da Madeira, no qual o autor faz uma caracterização de vestígios geomorfológicos existentes no Paul da Serra, no Pico do Areeiro e no Pico Ruivo, que são claramente testemunhos de um clima bastante mais frio que o atual, o que de fato se revelou uma abordagem eficaz de reconstituição do clima do passado (reconstituições paleoclimáticas do Quaternário recente).    

   O Professor Orlando Ribeiro concentrou-se no estudo da Ilha da Madeira para preparar o livro-guia da excursão à Ilha, no âmbito do XVI Congresso Internacional de Geografia da União Geográfica Internacional, que ele organizou em Lisboa, em 1949. Esta excelente monografia, escrita em francês, seria traduzida para português e reeditada em 1985, com o título “A ilha da Madeira até meados do século XX”. Na excursão participaram numerosos colegas estrangeiros. Em abril de 1949, durante duas semanas, reuniu-se na Madeira um conjunto, talvez único, de grandes figuras da Ciência, pertencentes a sete países. No projeto que anunciava a excursão, o Professor escreveu com entusiasmo: «Paysage grandiose et d’une beauté indescriptible».  

 

4. Ao longo da sua carreira, qual o projeto que destacaria? Porquê?

Todas as experiências profissionais têm sido enriquecedoras. Contudo, devo dizer que a participação em projetos de investigação de âmbito internacional foi particularmente estimulante. As visitas técnicas que tive a oportunidade de fazer a diferentes países da Europa, nomeadamente à Áustria, à Noruega, à Suíça e à Alemanha, deram-me uma compreensão mais profunda das práticas e estratégias adotadas, nomeadamente na gestão de riscos e de catástrofes naturais e tecnológicas. É no decurso destas visitas técnicas que temos a oportunidade de pôr os problemas em perspetiva, e de perceber melhor como a realidade específica de cada território é fundamental na gestão de riscos. O que pode ser altamente eficaz numa região pode não funcionar noutro lugar, devido a diferenças físicas, culturais e socioeconómicas. A adaptação das estratégias de gestão de riscos, para atender às necessidades e especificidades de cada região, é crucial para garantir a eficácia das respostas e a resiliência das sociedades, face aos desastres naturais.

Mas gostava de destacar um convite que me foi dirigido em 2022, por parte das autoridades de Proteção Civil da Alemanha, para proferir uma conferência sobre gestão de riscos de cheias e inundações. Foi uma honra receber aquele convite, o qual aconteceu no seguimento da minha participação em projetos com técnicos daquele país. O encontro foi, sobretudo, uma grande oportunidade de troca de experiências. Como técnico habituado a lidar com os problemas das cheias e inundações num território insular, na verdade, foi para mim um enorme privilégio poder visitar alguns dos locais que tinham sido afetados pela grande cheia que fustigou a Alemanha ocidental em julho de 2021, e analisar de perto os fatores e as consequências da catástrofe.    

O que se passou foi que na noite de 14 para 15 de julho de 2021, os habitantes de um vale na Alemanha ocidental (o vale do Ahr), foram brutalmente surpreendidos pela força das águas fluviais, que transbordaram do seu leito normal. O vale do Ahr está inserido numa região pitoresca, famosa pelo seu vinho e pelas celebrações que se seguem à vindima, um lugar idílico para férias. As cheias diluvianas daquela noite provocaram 134 mortes ao longo do fundo do vale do rio Ahr. O total de estragos foi avaliado em 30 mil milhões de euros. Uma verdadeira catástrofe climática.

Tem havido muita discussão na Alemanha e nos países vizinhos em torno desta tragédia. Não foi emitido alerta oficial de catástrofe. As pessoas sentiram-se impotentes e ganharam consciência sobre a insignificância do ser humano perante a força da natureza.

Por norma, as cheias são devastadoras em qualquer parte do Planeta, arrastam casas, rebentam com pontes e outras construções da engenharia humana, mas muita gente não esperava assistir a um cenário de total destruição na Alemanha. A ideia de que se trata de um país preparado, à partida com tecnologia avançada para manter as pessoas a salvo, não se verificou neste caso em concreto. Na minha opinião este caso deve servir de exemplo e lição para toda a gente, para a importância da preparação, da prevenção e da prontidão.

Os cientistas tentam encontrar explicações para esta cada vez maior instabilidade climática. Fala-se muito sobre os milhões de toneladas de água que, em determinado momento e numa dada região, podem estar acumuladas na atmosfera, na forma de vapor de água. Em termos simples, o que se passa é que quanto mais quente fica o Planeta, mais água evapora no ar e, ao mesmo tempo, quanto mais quente o ar está, mais humidade consegue absorver. O que está a acontecer é mais evaporação, mais transpiração do coberto vegetal, ou seja, mais água a ser transferida das superfícies oceânicas e terrestres para a atmosfera. Em simultâneo, o aquecimento global está a causar mais situações de seca. Isto é, provoca mais chuva, mas também provoca menos chuva. Pode parecer contraditório, mas não é. A precipitação ocorre de modo concentrado em certos períodos e regiões. Algumas regiões vão experimentar mais secas e outras regiões vão sofrer com chuvas mais fortes. Os processos de evaporação e precipitação são muito complexos. O facto é que a frequência de ocorrência de eventos meteorológicos extremos tem aumentado a olhos vistos. Quase que podemos dizer que este é o novo normal e o que os cenários climáticos anunciam é mau.

Mas é preciso dizer que se é verdade que as alterações climáticas aumentaram a probabilidade de ocorrência de eventos de chuva forte, cada vez mais intensos, existem outros fatores, também de natureza humana, que contribuem para agravar os riscos territoriais, quanto mais não seja, porque a densidade de ocupação construtiva aumentou significativamente em duzentos anos. O vale do Ahr na Alemanha ocidental tem um fundo de vale plano, o que naturalmente favoreceu a sua ocupação humana ao longo de décadas e décadas e, onde antes havia espaço horizontal para comportar a água das cheias, na atualidade, a volumetria das casas implantadas no fundo de vale fez diminuir o espaço horizontal onde a água se acumulava durante as cheias no passado. O resultado é o aumento do nível vertical que é ocupado por esse mesmo volume de água, com o nível da água a chegar ao segundo andar das casas que não foram destruídas pela força das correntes fluviais.

Ou seja, no passado as cheias eram muito menos danosas, porque o número de casas existentes no fundo daquele vale era substancialmente inferior ao número atual. O evento de chuva forte de 2021 na Alemanha foi extraordinário, mas não foi inédito, houve um evento semelhante antes, curiosamente em julho de 1804. E, depois, para piorar a situação, temos outro problema que me parece até de mais difícil resolução, que tem que ver com a amnésia das cheias. As pessoas esquecem as cheias. Quando as grandes cheias ocorrem numa determinada região, num longo intervalo temporal, as pessoas facilmente esquecem-nas, mas o risco permanece. Quando a memória do desastre desaparece totalmente de uma geração, o risco volta a aumentar brutalmente para a geração seguinte. Chegámos então à conclusão de que é preciso educar as pessoas para compreenderem que estes eventos acontecem, mesmo que não tenham acontecido em determinada região nos últimos 50 ou 100 anos. Note-se como as pessoas são sempre o elemento central em torno da discussão das problemáticas sobre alterações climáticas e riscos naturais.  

 

5. Como Técnico nas áreas da gestão de recursos hídricos, da hidrologia, da geomorfologia e da gestão de catástrofes naturais, como é que a ciência geográfica o tem auxiliado no desempenho das suas funções?  

A formação académica dá-nos conhecimentos de base, os quais são, sem dúvida, indispensáveis para o nosso futuro profissional, mas, para enfrentar os desafios das sociedades atuais, é fundamental manter-se atualizado, e ter sempre interesse em não só aprofundar os temas que já dominamos, mas também expandir horizontes, explorar novas áreas de conhecimento. Esse esforço pessoal é essencial.

A formação em Geografia facilita a integração em equipas de investigação pluridisciplinares. No que se refere aos desafios territoriais, que podem ser variados, a promoção dessa interdisciplinaridade, desempenha um papel fundamental na compreensão e na resolução de problemas territoriais complexos. Um bom exemplo do que acabei de referir prende-se com a gestão dos riscos naturais e ambientais. Aqui está bem vincada a ideia de abordagem pluridisciplinar e transversal, justamente porque a mitigação e controlo da exposição ao risco abrange forçosamente a adoção de medidas estruturais e não estruturais, que são de natureza distinta.

Nas sociedades modernas existe uma profunda especialização de conhecimentos e de profissões, o que inevitavelmente resulta na fragmentação da capacidade de intervenção intelectual e operacional dos cidadãos na comunidade. É por isso que, hoje em dia, já não há a figura do cientista que estruturou o modo como se fazia ciência nos séculos XIX e XX, o cientista que dominava todo o conhecimento, o cientista completo, se quiserem. Devido justamente a essa segmentação do conhecimento, hoje, a ciência faz-se em equipas multidisciplinares. Neste contexto que acabei de descrever, diria que a formação em Geografia é claramente uma mais-valia, pelo seu carácter de integrar conhecimentos, mas ainda assim não é suficiente e, portanto, temos de ter a humildade de reconhecer as nossas limitações profissionais.      

Há outro aspeto que deve ser realçado e que os Técnicos das geociências conhecem perfeitamente, que é o trabalho de campo como método de trabalho indispensável. É no campo que se tiram lições, por isso quando ocorrem desastres naturais é fundamental ir ao campo, fazer levantamento de campo, perceber onde e como as coisas aconteceram e, a partir daí, tirar conclusões sobre como devemos agir no futuro. Isto não vai lá só com trabalho de gabinete. Esse trabalho permite avaliar os impactos, a extensão dos danos e as necessidades imediatas das comunidades afetadas. Isto de que estou a falar é fundamental para a tomada de decisões rápidas e eficazes no que diz respeito à resposta de emergência e à reconstrução.

Por outro lado, ter a possibilidade de fazer investigação na ilha da Madeira, por si só, é já uma vantagem para quem a exerce, na medida em que a Ilha é um laboratório vivo, um laboratório natural único para a monitorização dos fenómenos atmosféricos e para o estudo do clima atual e futuro. No contexto da ameaça das alterações climáticas, julgo que temos margem de progressão, para tirar partido da posição geostratégica das nossas ilhas, para responder ao crescente interesse científico internacional de monitorizar o clima na bacia Atlântica, estabelecendo a ligação entre os continentes americano, europeu e africano.

Para além disso, a sua origem vulcânica e o quadro geomorfológico, fazem do arquipélago da Madeira, um laboratório real de estudo dos processos de modelação do relevo e da paisagem. Temos muito que aprender, há muito conhecimento a produzir, mas sempre baseado no trabalho de campo e no método científico, insisto muito nestes aspetos. No campo podemos perceber melhor, se e como podemos aplicar as nossas ideias, no campo temos a oportunidade de identificar as várias condicionantes com as quais temos de lidar e é também no campo que percebemos quais são as medidas que, a serem implementadas, vão ser mais eficazes.

 

6. Nos relatórios mais recentes do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), percebe-se que é dada maior atenção à relação entre alterações climáticas e as cidades, em sua opinião qual a razão desse enfoque?

O principal desafio científico que temos em mãos é o de saber como é que as alterações climáticas globais e a própria variabilidade natural do clima (atenção que são dois conceitos distintos) vão interferir com o clima regional e local, em particular onde há grandes concentrações populacionais.

É bom lembrar que o planeta nunca foi habitado, como agora, por tanta gente ao mesmo tempo. E isso tem implicações sérias na relação entre modelos de ocupação dos territórios, alterações climáticas e gestão de riscos. Só para termos uma ideia do crescimento extraordinário da população mundial, em 1960, atingimos, pela primeira vez na história da humanidade, o registo de 3,5 bilhões. Desde novembro de 2022 superamos 8 bilhões de pessoas e as previsões sugerem que, em 2050, o planeta será habitado, no mínimo, por nove bilhões de pessoas. Em minha opinião, este indicador de crescimento populacional inédito devia servir como um sinal de alerta para a perigo da sobrecarga do Planeta. Mais gente significa mais consumo de recursos naturais e, portanto, mais desafios que têm de ser enfrentados com a visão estratégica da preservação dos recursos para as gerações futuras.

Mas, se em 1950, apenas 30% dos humanos residiam em espaço urbano, a realidade atual de ocupação do território, mudou radicalmente. Desde 2008 que mais de metade da população global vive em áreas urbanas, sendo provável que chegue a 70% em 2050. O fenómeno da urbanização não só não tem precedentes, como parece ser um processo contínuo e aparentemente irreversível em muitas partes do mundo. Em 1950, havia no mundo 80 cidades com mais de 1 milhão de habitantes, hoje, são cerca de 417.

As cidades, que, apesar de ocuparem apenas 2% do espaço da Terra, usam 60 a 80% do consumo de energia e provocam 75% das emissões de carbono. Não nos esqueçamos que a utilização de energia é responsável por cerca de 60% das emissões de gases com efeito de estufa à escala global.

A pegada ecológica das cidades é, pois, impossível de ignorar. Os números acima apresentados justificam a necessidade de recentrar o debate das alterações climáticas nas relações entre clima e as cidades. As cidades são unidades territoriais onde existe maior concentração de população e, por isso, é onde os problemas se vão concentrar e agudizar, dos quais saliento os riscos climáticos locais, que se manifestam através de fenómenos de ilhas de calor, inundações urbanas e escassez de água, devido à impermeabilização do solo, à falta de áreas verdes e ao uso intensivo de recursos.

Por isso, na gestão desta temática, não devemos trabalhar só na adaptação às alterações climáticas, temos de pensar também na mitigação, que passa pelo investimento em tecnologias de baixo carbono para reduzir as emissões nos sectores de energia e transporte, de edifícios e da indústria.

De tudo o que acabei de expor, facilmente se conclui que, na verdade, as alterações climáticas são, em primeiro lugar, uma ameaça real para a sobrevivência da espécie humana, mas, talvez mais em concreto, uma ameaça ao modo de vida das sociedades modernas e urbanas, que vivem em espaços artificiais, onde é urgente fazer acontecer o conceito de desenvolvimento urbano sustentável, com ênfase na ligação entre infraestruturas, ambiente e desenvolvimento urbano.

 

7. No seu trabalho de investigação científica, tem dedicado particular atenção à questão do clima das cidades. Qual é a importância desse conhecimento para melhorar a qualidade de vida das populações e que medidas podem ser tomadas nesse sentido?

Hoje em dia estamos todos preocupados com a sustentabilidade das cidades e, de facto, há razões para isso. As cidades estão em franca evolução. Como referi anteriormente, vivemos num mundo de cidades, de supercidades, que abrigam milhares e milhares de pessoas. É no seio do desafio de construir cidades mais ecológicas e sustentáveis que surgiu, há já várias décadas, uma área de conhecimento específico: a Climatologia Urbana, onde a investigação de uma perspetiva geográfica pode ser de grande interesse para o ordenamento do território e para o planeamento urbano.

Antes de mais, convém esclarecer que, independentemente das alterações climáticas globais, muitas cidades têm já os seus próprios problemas de deterioração do clima devido ao efeito de ilha de calor urbano. Este efeito consiste no aquecimento relativo das cidades, comparativamente às áreas rurais vizinhas, e resulta das dinâmicas de armazenamento e transferência radiativa e turbulenta de calor, que ocorrem na camada de ar próxima do solo, na atmosfera urbana, se quiserem.

A questão climática é um problema a várias escalas (temporais e espaciais). A resolução dos problemas de natureza climática exige intervenção à escala regional e local, também no sentido de controlar e ordenar o crescimento urbano. Do ponto de vista da Geografia, o estudo do clima das cidades abrange a caracterização espacial dos elementos meteorológicos, cruzados com informação das características geográficas do terreno, do edificado e da vegetação. As áreas urbanas são ecossistemas humanos bastante sensíveis à dinâmica climática, aos fatores de risco local e aos possíveis impactos das alterações climáticas, aspetos que tendem a afetar a saúde, a segurança e a qualidade de vida das populações.

É preciso relembrar e alertar para o facto de que, no contexto das alterações climáticas projetadas até ao final do presente século, as cidades da Europa do Sul estão sujeitas ao agravamento de vários riscos, como sejam o excesso de calor, a modificação dos padrões de vento, a poluição atmosférica, a diminuição da precipitação anual e o aumento dos eventos de precipitação intensa, entre outros.

Deste modo, o estudo e avaliação do clima das cidades, do ponto de vista térmico e de condições de vento, assenta na preocupação em promover condições de ventilação adequadas e mitigar a ilha de calor urbano para melhorar a qualidade do ar, o conforto bioclimático em espaço exterior e, por conseguinte, proteger a saúde humana.  

Desta avaliação climática têm resultado orientações gerais para mitigar o efeito de ilha de calor urbano.

Uma dessas orientações tem que ver com o controlo no volume das construções e na relação altura e largura das ruas, no sentido de evitar a formação de corredores urbanos estreitos e altos, que limitam a incidência da radiação solar.

Os espaços verdes são também fundamentais na regulação do clima das cidades. Na realidade, os espaços verdes funcionam como ilhas de frescura no meio da cidade, que podem influenciar favoravelmente o clima em termos térmicos nas áreas urbanas envolventes. As cidades precisam de mais árvores para fazer sombra e enfrentarmos o calor. Mas temos de saber escolher as árvores adequadas. Nas nossas cidades de clima mediterrânico, com estações climáticas bem vincadas, a opção deve recair sobre espécies caducifólias, já que bloqueiam a radiação solar no verão e deixam-na passar no inverno.

A seleção de materiais de construção e de cobertura adequados, como por exemplo, os telhados verdes, com vegetação, são também aspetos com influência no clima das cidades. Nas cidades de clima mediterrânico, os materiais de cor escura são desaconselhados, pois contribuem fortemente para a absorção de radiação e para o sobreaquecimento estival no interior dos edifícios e, também, para o aumento do efeito de ilha de calor urbano de superfície. Para combater as temperaturas altas, as fachadas devem apresentar cores claras, já que estas permitem maior reflexão e não vão absorver tanto a radiação solar.

Em relação à ameaça das alterações climáticas em curso, todos nós temos de perceber que, no essencial, temos três escolhas: 1) mitigar o fenómeno, o que resultará na redução de riscos; 2) adaptar-nos a um clima diferente; 3) ou sofrer com as consequências dessas alterações de funcionamento do sistema climático. Sendo certo que, quanto mais mitigação for possível fazer, menos adaptação será exigida e menos sofrimento as sociedades humanas enfrentarão.

  

8. Costuma-se dizer que o “escritório do geógrafo é o mundo”. Qual foi a viagem mais marcante para si? Conte-nos um pouco da geografia desse lugar.

Há no tema das viagens uma ligação interessante com as ameaças ambientais atuais, que são preocupantes. O Planeta vai continuar a existir por muitos mais milhões de anos. O que aqui está em causa com a problemática das alterações climáticas é a sobrevivência da espécie humana. Nesta discussão devia estar sempre presente a ideia de que a mãe natureza não precisa das pessoas, mas as pessoas precisam dela. Quando viajámos fazemo-lo para descobrir beleza, porque queremos ser surpreendidos por cenários idílicos e, apesar das agressões a que a natureza tem sido sujeita, o facto é que existem ainda lugares mágicos e com natureza bem conservada. Na realidade, a natureza até é bastante resiliente.

Mas respondendo diretamente à questão, talvez a viagem mais marcante que fiz foi à Tailândia. Por norma, têm sido sempre viagens pouco convencionais, em modo de autossuficiência e, quando assim é, as peripécias abundam. Tive a felicidade de percorrer o território da Tailândia de norte a sul, durante 15 dias, de mochila às costas, numa verdadeira aventura. É um país mágico com uma cultura totalmente distinta da nossa. A Terra do sorriso. A capital Banguecoque, a maior cidade do país, é avassaladora, porque somos confrontados com o ritmo frenético das grandes metrópoles, mas depois encontramos espaços no interior e periferias da cidade que preservaram a cultura e a arquitetura milenar. Mas a Tailândia é muito mais do que a sua capital. A cerca de uma hora para norte de Banguecoque, temos a cidade de Ayutthaya, que está repleta de templos antigos, com uma arquitetura admirável. Um verdadeiro museu ao ar livre. Uma cidade histórica que chegou a ser a capital do Reino. No norte do País prevalece um verde luxuriante, Chiang Mai é uma cidade mágica na montanha, que os ingleses visitam com regularidade. E depois ainda há o sul do País, as praias, Krabi, Ao Nang. As famosas ilhas Phi Phi, onde não circulam carros e do norte ao sul da ilha a travessia é feita em poucos minutos, são de facto a cereja no topo do bolo em tudo o que aquele país da Ásia tem para oferecer.

Mas também gosto de viajar sem sair de casa, faço-o através da literatura de viagens, que é riquíssima. Em Portugal temos, entre outros, o Gonçalo Cadilhe que relata as suas experiências de viagens de forma emotiva, ao ler os seus livros é quase como se estivéssemos também a viver a viagem.

 

9. Indique um livro que o tenha marcado e explique-nos a razão da sua escolha.

É praticamente impossível indicar apenas um livro. Felizmente o Mundo tem produzido inúmeros génios literários. A capacidade dos escritores de transmitir emoções, ideias e mundos complexos por meio das palavras é espantosa.

Costumo dizer que ir a uma livraria é como ir ao supermercado, se não levamos a lista das compras, corremos o risco de trazer para casa o que não faz falta. Felizmente há literatura para todos os gostos, mas por vezes somos seduzidos pelas capas dos livros, por isso prefiro manter sempre atualizada uma lista de potenciais obras literárias a ler.

De repente, vêm-me à memória três livros excecionais que tive imenso gosto em ler: 1) “Os Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, uma obra incrível; 2) “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, que faleceu recentemente; 3) “O Ensaio Sobre a Cegueira”, de José Saramago. Já agora, para quem gosta de Saramago, aconselho a leitura dos “Cadernos de Lanzarote”.

Mas trago na bagagem outros escritores, aqui ao lado, de Espanha, o Javier Marías, que infelizmente também faleceu recentemente. Os seus livros de crónicas sobre o pulsar da sociedade espanhola são uma delícia. Da sua vasta obra, li apenas “Quando os Tontos Mandam”, uma leitura agradável e divertida, que é uma crítica social. O livro reúne 95 artigos do autor, que, ao contrário do que o título pode sugerir, são textos que não têm como principal objeto os detentores de cargos públicos.

De origens mais longínquas, refiro o Leonardo Padura, um escritor e jornalista cubano, com vários livros interessantes, dos quais destaco dois: “O Homem que Gostava de Cães” e “Como Poeira ao Vento”. Outro escritor excecional que tive o prazer de descobrir foi o Mario Vargas Llosa, um peruano vencedor do Prémio Nobel de Literatura em 2010. Dele, li a “A Civilização do Espetáculo”, muito bom.

E mesmo correndo o risco de parecer como os comentadores da televisão portuguesa a promoverem livros, não resisto a mencionar mais algumas obras de grande qualidade, em meu entender. Uma delas foi “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann (Alemão), um dos romances mais influentes da literatura mundial do século XX, uma escrita complexa, com profundas reflexões sobre a condição humana. Outra leitura mais divertida foi “A Causa das Coisas”, um livro de crónicas de Miguel Esteves Cardoso. Uma escrita de mestre, de um profundo conhecedor das raízes e cultura portuguesas. E também o “Equador”, de Miguel Sousa Tavares, um livro que apesar de volumoso é de leitura fluente.

 No âmbito da Geografia gostei muito de ler Jared Diamond, um escritor norte-americano, conhecido por escrever livros populares que exploram temas interdisciplinares, especialmente aqueles que combinam história, geografia, biologia e antropologia. Dele já li “Armas, Germes e Aço - Os Destinos das Sociedades Humanas” e “Colapso - Como as Sociedades Escolhem o Fracasso ou o Sucesso”.

 

10. Que conselho daria a um recém-licenciado em geografia?

O conselho que daria a qualquer recém-licenciado, é o de que sejam proativos, persistentes, resilientes, que tenham a capacidade de definir objetivos profissionais claros e que trabalhem afincadamente para os alcançar, mas, acima de tudo, que saibam honrar e capitalizar ao máximo a mais-valia de terem conseguido alcançar um patamar de formação académica, o qual, mesmo nas sociedades ditas desenvolvidas, não está ao alcance de todos. Olhe, e ter esperança no futuro, acreditar na capacidade de mobilização da Sociedade, de criar condições que promovam o emprego qualificado e a estabilidade profissional para os jovens. Este aspeto é de vital importância, pois, como diz o ditado, ninguém pode ser sábio de estômago vazio.

 

11. Por último, diga-nos qual a importância da geografia para a nossa sociedade.

Tenho imensa dificuldade em responder a esta questão em poucas palavras. Os temas da geografia são vastos, como se depreende de tudo o que já referi anteriormente. Hoje em dia, os geógrafos estão por toda parte, na coordenação de projetos de investigação e estudos sobre diversos temas importantes, desde as alterações climáticas, riscos climáticos e hidro-geomorfológicos, ordenamento do território, planeamento urbano, sistemas de informação geográfica, saúde pública e muito mais. Mas, sinceramente, até me parece mais interessante discutir a importância da ciência no seu todo para a sociedade.

Mas vou por partes. Na perspetiva da minha pequena janela de conhecimento consigo dar o exemplo da Geografia Física, como ciência que combina elementos da Geologia, da Meteorologia, da Ecologia, da Biologia e outras ciências para estudar o ambiente físico da Terra, como relevo, clima, solos, hidrografia e vegetação.

O que quero dizer é que, para compreendermos a complexidade dos sistemas naturais e as interações entre os diversos elementos que compõem o ambiente terrestre, temos forçosamente de adotar uma abordagem interdisciplinar. Voltamos sempre a este aspeto que considero central, o do trabalho de equipas de cientistas.

Atente-se ao modo como a climatologia tem relações estreitas com a Geologia, com a Geomorfologia, com a Hidrologia, com os Solos, com a Biologia, etc. Reparem, por exemplo, como as características do clima de uma determinada região têm influência significativa na produção do escoamento anual das bacias hidrográficas existentes nessa mesma região.

Veja-se o caso concreto do modo como uma região montanhosa pode ser progressivamente desmantelada pela erosão fluvial, a qual, por sua vez, depende da climatologia das chuvas intensas. A paisagem física não é estática e está sujeita a mudanças ao longo do tempo. A grande dificuldade ao nível do cidadão comum é a de que os segredos da paisagem são incompreensíveis à escala humana. Por exemplo, qualquer região de montanha, de relevo irregular, com vales muito encaixados, representa um testemunho do clima do passado. Se olharmos para a forma dos vales, facilmente percebemos que a sua forma em “V”, com fundo estreito mais ou menos plano, foi modelada por cheias catastróficas, desencadeadas por sucessivos episódios de precipitação intensa ao longo de milhares de anos. Isto é, a forma dos vales não resulta de um processo de erosão progressiva em situação de escoamento fluvial ordinário, mas sim de escoamentos torrenciais, durante os quais ocorrem processos de erosão, transporte e sedimentação.

Esta leitura da paisagem natural é central na compreensão do ecossistema em que vivemos. É espantoso como aquilo que hoje damos por garantido na ciência nem sempre tenha sido assim. Por exemplo, a visão bíblica catastrofista da génese das formas do relevo só viria a ser posta em causa no século XVIII por Hutton (1726-97) e, só no fim do século XIX, os estudos de vários investigadores americanos, que culminaram com a teoria de W.M Davis, da “erosão normal”, levaram a aceitar a ação fluvial como agente de erosão (sentido lato).  

 Em termos gerais, sou da opinião de que a ciência no seu todo, nunca fez tanta falta como agora às sociedades modernas, que estão perante uma encruzilhada em relação ao progresso tecnológico. Hoje em dia, falamos em Sociedade de Risco. A sociedade moderna está exposta a um tipo de risco que é o resultado do processo de modernização em si mesmo. Com os avanços da ciência e da tecnologia, os indivíduos ficaram mais vulneráveis e com menor controle sobre as suas vidas. O melhor exemplo é a nossa dependência do telemóvel, entre outros. Em boa verdade, foi o desenvolvimento tecnológico que nos levou a novos produtos e a novas formas de fabrico, com o impacto ambiental que vemos que isso tem tido, no que respeita a emissões de dióxido de carbono, com o consequente agravamento do efeito de estuda. Ou seja, se a ciência nos trouxe até aqui, também será pela via da ciência que havemos de sair da encruzilhada em que nos encontrámos.  

Por conseguinte, toda a ciência é decisiva para a sociedade, sobretudo perante a ameaça ambiental, económica e social que as alterações climáticas representam para o nosso Planeta, em que necessitamos de mecanismos eficazes de mitigação e de adaptação aos efeitos das alterações climáticas. O desenvolvimento económico, mas também humano, baseia-se no progresso científico. A ciência tem de estar ao serviço da sociedade. No entanto, devemos preocupar-nos com a maneira como a informação científica pode ser erradamente utilizada ou facilmente manipulada, criando desinformação junto da opinião pública. Veja-se o caso dos negacionistas da ciência, vejam-se as parvoíces que por aí proliferam em torno do criacionismo e dos terraplanistas.  

Atente-se à estratégia seguida por alguns setores de atividade, que procuram cultivar uma narrativa enganadora de que a ciência do clima está repleta de incerteza, para servir a interesses específicos. Uma estratégia que visa claramente semear a dúvida. Devemos confiar na ciência do clima, porque há consenso na comunidade científica, mas atenção, esse consenso foi obtido depois de muita crítica, muito debate e autocorreção dos erros. A ciência é um processo coletivo, não é individual. Há quem recomende uma literacia didática para negacionistas, pode ser que resulte.

Nos dias que correm é preciso insistir na ciência rigorosa, que tem de ser alicerçada no método científico. Isso aprendemos na Universidade, é um aspeto central, que pode parecer despiciendo, mas que, em minha opinião deve ser relembrado até à exaustão: o método científico que segue etapas, desde a observação (muito importante em geografia), passando pela colocação de questões de partida, pela recolha e análise de dados, pela discussão e validação de resultados, até chegarmos às conclusões. Não devemos perder de vista esta ferramenta quando fazemos ciência, sobretudo nos dias de hoje, que se fala tanto em inovação e tecnologia, as quais na ausência do método científico e do estudo sistemático, traduz-se na alienação do conhecimento genuíno, e isso é tempo perdido, traduz-se em andar às voltas, sem grandes avanços, e, por vezes, corremos esse risco no meio mediático em que vivemos.

 

Publicado por:

Sérgio da Silva Lopes

Data de Publicação:

19 Dez, 2023 às 10:45

(Editado: 19 Dez, 2023 às 10:57)

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