Artigo/Entrevista

Airbnb na Madeira

excerto do livro "Airbnb em Portugal"

 

Airbnb na Madeira por  Ana Neves e Ilídio Sousa,

Associação Insular de Geografia 

 

A região

Com uma população de 253 945 habitantes (2018)[1] , uma orografia vigorosa que atinge os 1862 metros de altitude no Pico Ruivo, com 66% do território com mais de 25% de declive e 64% da área terrestre (515km2) sob algum tipo de proteção (Parque Natural, Reserva Natural, Monumento Natural, Paisagem Protegida ou Sítio da Rede Natura 2000), a Região Autónoma da Madeira (RAM) apresenta caraterísticas muito peculiares que se repercutem nos mais variados aspetos biofísicos e socioeconómicos.

Apesar da densidade populacional da região não ser particularmente expressiva (316,8hab/km2), a ilha da Madeira apresenta uma elevada concentração populacional na faixa litoral sul da ilha, que congrega 92,3% dos habitantes. O Funchal, cidade capital e principal polo do desenvolvimento económico, atinge uma densidade de 1367,3hab/km2, enquanto os municípios exclusivamente localizados na costa norte (Porto Moniz, São Vicente e Santana) não ultrapassam os 55,4 hab/km2.

As caraterísticas naturais da ilha da Madeira, a sua posição geográfica e o tipo de povoamento, conferiram-lhe, ao longo dos séculos, uma posição privilegiada no panorama do turismo mundial. Ancestralmente, pela sua localização no caminho das principais rotas comerciais marítimas, a partir do séc. XVIII, pela amenidade do seu clima e pelas suas belas paisagens e, no último século, sobretudo pela segurança, património natural e cultural, clima e qualidade das infraestruturas turísticas. Em consequência, o alojamento local (AL) é uma realidade do turismo insular madeirense desde os seus primórdios. Nas primeiras décadas do século XIX, a apologia do clima, levou até à ilha inúmeros visitantes das classes mais abastadas europeias. Os relatos da época[2], de Charles Heineken ou Alfred Lyall, salientam a dificuldade em encontrar alojamento temporário, no entanto, referem já a existência de boarding-houses, ou seja, edifícios urbanos para instalação temporária, onde as famílias se podiam acomodar temporariamente em casas de locais. Igualmente comum à época, passou a ser a possibilidade dos visitantes se instalarem nas quintas da periferia do Funchal, pertencentes a famílias inglesas residentes, ou a madeirenses, que por esta via obtinham algum rendimento extra para compensar a perda de produtividade da agricultura, fruto do efeito devastador das doenças de oídio e filoxera que atacavam os vinhedos.

O enobrecimento das ruas e lugares mais cativantes para os visitantes, originou uma progressiva desocupação destes espaços pelos residentes tradicionais, especialmente pelas classes menos abastadas, num processo gradual que diríamos hoje de gentrificação, desencadeado pelo elevado preço do solo, bens e serviços, sejam estes espaços urbanos como o centro do Funchal, periurbanos como o Garajau ou os Reis Magos (no município de Santa Cruz), ou rurais como no município da Calheta. Este processo favoreceu a implantação de empreendimentos turísticos, que transformaram o setor na principal alavanca da economia insular madeirense, mas reduziram o AL, em apartamentos, moradias e estabelecimentos de hospedagem, a valores residuais. Segundo os dados do Registo Nacional de Alojamento Local (RNAL), em 31 de dezembro de 2009, estavam em funcionamento na RAM, apenas 47 estabelecimentos de AL, concentrados maioritariamente nos municípios da Calheta (18 estabelecimentos) e Funchal (16 estabelecimentos). No entanto, a eclosão recente de novos conceitos de economia (criativa, colaborativa, sustentável, de partilha,…) baseados no conhecimento, na criatividade, na experiência, na cultura e na sustentabilidade, aliadas ao desenvolvimento tecnológico, às novas exigências do mercado turístico e às recentes alterações do regime de prestação de serviços de alojamento temporário, repercutiu-se, na última década, no aparecimento de novos modelos de negócio, associados ao turismo, que se refletiram num crescimento exponencial do número de propriedades de AL.

Segundo os dados da plataforma Airdna[3], em 2018, a região dispunha já de 5.455 propriedades de AL, distribuídas pelas tipologias de Moradia/Apartamento Inteiro (4.757), Quarto Privado (631), Quarto Partilhado (57) e não definidas (10), com um crescimento que foi particularmente expressivo entre 2015 e 2018, quando entraram em funcionamento 4.828 novas propriedades.

Entre 2009 e 2018, a oferta de AL na RAM teve uma expansão de tipo mancha de óleo, progredindo de um modo geral desde os núcleos urbanos mais próximos do litoral para cotas mais elevadas, embora com valores muito mais expressivos na costa sul da ilha da Madeira, onde se destaca o município do Funchal, que em 2018 representava 45,9% da oferta (2.503 propriedades), e o concelho da Calheta que dispunha de 17,7% das unidades (963 propriedades). Esta oferta traduz-se numa capacidade de alojamento para 24.037 hóspedes (2018) que, para além de complementar a oferta disponível em empreendimentos turísticos, maioritariamente localizados nas áreas urbanas consolidadas, permitiu a expansão da oferta de alojamento em áreas predominantemente rurais e pequenas localidades, até então desprovidas deste tipo de equipamento. Além disso, responde à crescente procura de uma oferta mais próxima das áreas naturais (especialmente aquelas sob algum tipo de proteção) e inserida nas vivências locais.

Segundo os dados da Airdna (2018), o Rendimento Anual Total foi de 31.303.919€, o que corresponde a um Rendimento Anual Médio por Propriedade de 5.738,57€, decorrente de uma Taxa de Ocupação Média de 33,8%, que poderá refletir algum desajustamento entre o enorme crescimento da oferta e a evolução da procura, apesar de um conjunto de fatores estruturais favoráveis, entre os quais se incluem: as políticas de incentivo à reabilitação e requalificação urbana e ao desenvolvimento do turismo em espaço rural; a  melhoria das acessibilidades internas; a valorização do património natural e cultural (tangível e intangível) e a gradual consolidação da RAM como destino turístico de excelência, com várias distinções internacionais, entre as quais a de Melhor Destino Insular na Europa nos anos de 2013, 2014, 2016, 2018 e 2019, Melhor Destino Insular do Mundo em 2015, 2016, 2017 e 2018, pelos World Travel Awards, a atribuição do grau de Excelência de Qualidade pela Organização Mundial de Turismo e o reconhecimento pela UNESCO da floresta indígena da Laurissilva como Património Mundial Natural da Humanidade. 

 

Funchal e Calheta

O município do Funchal é aquele que mais visitantes acolhe e o que apresenta uma maior oferta de AL (2.503 propriedades), concentrada, sobretudo, nas áreas historicamente com maior propensão turística, como a baixa e o litoral oeste (Lido, Ajuda e Piornais), onde se localiza também a maioria da oferta de empreendimentos turísticos. Nestas áreas, de cota mais baixa e mais próximas do centro urbano, a tipologia predominante de AL é o Apartamento, em consequência também do tipo de urbanização dominante. Todavia, atualmente, regista-se uma significativa penetração de propriedades de AL em áreas predominantemente habitacionais, que se estende até cotas bastante elevadas, chegando a atingir os limites do perímetro urbano do município, nas freguesias de São Gonçalo, Monte, São Roque e Santo António, onde a oferta de alojamento era residual até à última década. Nas áreas de maior altitude (acima dos 200 metros), a oferta é sobretudo de Moradias, com um Rendimento Anual Médio inferior aquelas localizadas mais junto ao litoral.

O AL é uma atividade económica importante para a cidade do Funchal, já que, segundo os dados relativos a 2018 da plataforma Airdna, representa um proveito direto de 14.145.149€ (Rendimento Anual Total), a que é preciso somar os benefícios indiretos, designadamente na geração de emprego, na promoção da reabilitação urbana e na dinamização do pequeno comércio local, especialmente nas áreas mais distantes do centro urbano. Todavia, é uma atividade cuja expressão atual pode desencadear disrupções nas dinâmicas socioeconómicas locais, quer através do aumento do preço do solo, dos bens e dos serviços que se tem vindo a verificar, mas, sobretudo, pelo aumento dos valores para o arrendamento convencional, que dificilmente consegue superar os valores do Rendimento Anual Médio por propriedade de Alojamento Local (5.651,3€), mesmo considerando a Taxa de Ocupação Média de 37,21%, registada em 2018.

No extremo oeste da ilha, a Calheta é um município predominantemente rural, com apenas 10.865 habitantes (estimativa de 2018) e um povoamento disperso, composto sobretudo por moradias unifamiliares. A sua amenidade climática, das melhores da ilha, o recente melhoramento das acessibilidades rodoviárias, que reduziram a distância/tempo face ao Funchal, e a criação de novas infraestruturas e equipamentos, como uma marina, uma praia de areia artificial e o Mudas - Museu de Arte Contemporânea, aliados à disponibilidade de solo urbanizável e de propriedades desocupadas, tornaram este concelho no segundo mais procurado da região para a implantação de unidades de AL, com 963 propriedades (2018), maioritariamente de tipo Moradia. Segundo os dados da plataforma Airdna, relativos a 2018, o município apresenta 88,63 propriedades por 1000 habitantes, o que constitui a maior densidade de unidades de alojamento local da região, que representam um Rendimento Anual Total de 7.706.654€ e uma Rendimento Anual Médio por Propriedade de 8.002,76€, que ultrapassa largamente a rentabilidade média das propriedades nos restantes municípios da região, que se situa nos 4.891,93€.

O desenvolvimento do AL neste município, realizado através da construção de novos edifícios, da requalificação do edificado existente e da restauração de símbolos de património arquitetónico regional, como antigos palheiros ou casas de colmo, contribuiu significativamente para a expansão do alojamento local em ambientes rurais, para a dinamização da economia local e criação de emprego, para a valorização do património e para a concretização de inúmeros investimentos públicos e privados, especialmente nos domínios da construção, das atividades de restauração e da animação turística. Contudo, o vigor e a celeridade das transformações têm criado um impacte significativo no acesso à habitação (compra e arrendamento), comprometendo a fixação de uma população já bastante reduzida.

Paralelamente, assiste-se a uma progressiva urbanização do território, manifestada sobretudo numa transição social do setor primário para o comércio e serviços. E, em algumas áreas, há já indícios de descaraterização dos lugares, através da desconstrução/reconstrução da sua paisagem rural, por intermédio da agregação ou desagregação de elementos que alteram a paisagem, nomeadamente edifícios e infraestruturas disruptivas, degradação e abandono de áreas agrícolas e reconfiguração da arquitetura tradicional.

Finalmente, se é certo que a presença e os efeitos da Airbnb em Funchal e Calheta são especialmente evidentes, a recente dinâmica de crescimento e a dimensão do AL que ocorre em toda a Região Autónoma da Madeira, obriga a considerar a importância direta desta atividade no setor turístico, mais especificamente no mercado do alojamento, mas sobretudo a sua relevância no mercado de residência, nas dinâmicas sociais e na organização geral do território, o que merece uma especial atenção, acompanhamento e regulação.

 

[1] INE/DREM, Estatísticas Demográficas da RAM  

[2] Em Arquivo Online Aprender Madeira, por Rui Carita. Consultado em junho 2019.

[3] Dados disponibilizados a 23 de outubro de 2018.

Publicado por:

Ana Neves

Data de Publicação:

24 Set, 2020 às 10:44

(Editado: 24 Set, 2020 às 10:47)

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